A saga Cigana
A história e os
segredos do povo mais misterioso do mundo...
Imagine um mundo em
que as pessoas não tenham endereço fixo, documentos, conta em banco, carteira
assinada nem história. E que a vida deles passe despercebida, como se não
existisse. Que a única certeza é que nunca faltará preconceito e ignorância,
medo e fascínio, injustiças e alegrias ao longo de sua interminável jornada.
Bem-vindo ao mundo Cigano.
Ou melhor: à imagem
que temos dele. O universo Cigano é tão antigo e extenso, tão cheio de crenças
e histórias que nem mesmo seu próprio povo conhece bem o limite entre verdade e
lenda. É que o nome “Cigano” designa muitos povos espalhados por quase todas as
regiões do mundo. Povos com diferentes cores, crenças, religiões, costumes,
rituais, que, por razões às vezes difíceis de compreender, foram abrigados sob
esse o imenso guarda-chuva (assim como populações muito diferentes são chamadas
de índios).
A história dos Ciganos
é toda baseada em suposições. E a razão é simples: faltam documentos. Os Ciganos
são um povo sem escrita. Eles nunca deixaram nenhum registro que pudesse
explicar suas origens e seus costumes. Suas tradições são transmitidas oralmente,
mas nem disso eles fazem muita questão – os Ciganos vivem o hoje, não se
interessam por nenhum resquício do passado e não se esforçam por se manterem
unidos. A dificuldade em se fixar, o conceito quase inexistente de propriedade
e a forma com que lidam com a morte – eliminando todos os pertences do falecido
– dificultam ainda mais o trabalho aprofundado de pesquisa.
Uma teoria, contudo,
é aceita pela maioria dos especialistas. A partir da constatação da semelhança
entre as línguas romani (praticada pelos rom, o maior dos grupos Ciganos) e
hindi (variação do sânscrito, praticada no noroeste da Índia, onde hoje fica o
Paquistão), foi possível elucidar a primeira e grande diáspora Cigana. Um
grande contingente, formado, possivelmente, por uma casta de guerreiros, teria
abandonado a Índia no século 11, quando o sultão persa Mahmoud Ghazni invadiu e
dominou o norte do país. De lá, emigraram para a Pérsia, onde hoje fica o Irã.
A natureza nômade de muitos grupos Ciganos, entretanto, também permite supor um
movimento natural de imigração que tenha chegado à Europa conforme suas cidades
se desenvolviam, oferecendo oportunidades de negócios para toda sorte de
viajantes e peregrinos.
É provável que, pelo
caminho, por volta do século 15, tenham passado pelo Pequeno Egito, uma região
do Peloponeso, no interior da Grécia. Pelo menos era de lá que eles diziam vir
a quem perguntava a sua origem. Daí o nome gypsy (em inglês), ou gitanos (em
espanhol). Mas, antes disso, ainda no século 13, um documento escrito por um
patriarca de Constantinopla já advertia sobre a presença dos adingánous, um
povo errante que, dizia, ensinava coisas diabólicas. O registro é o primeiro a
tratar os Ciganos de forma pejorativa e a registrar o medo que as cidades
européias sentiam de suas caravanas. Era o começo da sina Cigana.
“Desde o início do
contato com o Ocidente, eles foram causa de conflitos, provocadores de desordem
e subversivos ao sistema. E sofreram todo tipo de perseguições religiosa,
cultural, política e racial”, diz Aluízio Azevedo, mestre em história Cigana
pela Universidade Federal de Mato Grosso e ele mesmo um Cigano calon (veja no
quadro ao lado os principais grupos Ciganos). É difícil saber o que veio
primeiro: hábitos pouco ortodoxos ou o preconceito em relação a uma cultura tão
diferente. Os Ciganos tinham a pele escura, muitos filhos, uma língua
indecifrável e origem desconhecida. Talvez a falta de oportunidades de emprego
tenha sido a causa do seu destino artístico. Eram enxotados e então se mudavam,
levando novidades dos lugares de onde vinham. Assim, surgiu a fama de mágicos,
feiticeiros. Se todos acreditavam nisso, por que não aproveitar para fazer
dinheiro? E, então, as mulheres passaram a ler as mãos, a prever o futuro.
Negociar objetos era outra forma de sobrevivência: os Ciganos tinham acesso a
mercadorias “exóticas” e podiam levar sua tralha para onde quer que fossem.
Os bandos que
chegavam ao continente europeu eram liderados por falsos condes, duques ou
outros títulos de nobreza. Observando os peregrinos europeus, que entravam e
saíam facilmente das cidades, copiaram a idéia de salvo-conduto – uma espécie
de pai do passaporte. Os Ciganos inventavam que seus documentos haviam sido
expedidos por Sigismundo, rei da Hungria. Justificavam a vida nômade dizendo
que bispos os haviam condenado a peregrinar durante 7 anos como penitência pelo
abandono da fé cristã. Alguns dos salvos-condutos permitiam até que furtassem
quem não lhes desse esmolas. Uma tática para aumentar a chance de ser aceitos
nas comunidades, fazer negócios e exibir seus dons artísticos. Até que a farsa
acabava e eles pulavam novamente para outra cidade.
Durante a Reconquista
Cristã de 1492, na península Ibérica, árabes, judeus e Ciganos foram expulsos –
muitos deles vieram para as Américas. Um século mais tarde, eram varridos da
França, por Luís 12, e da Inglaterra, por Henrique 8o. Logo depois, a rainha
Elisabeth 1a decretou que ser Cigano era crime punido com morte. Uma das lendas
que surgiram nessa época, e que até hoje perdura, é a de que um dos ferreiros
que fizeram os pregos que prenderam Jesus na cruz era Cigano. Por isso, sua
gente teria sido amaldiçoada com uma vida nômade. E dessa forma construiu-se a
imagem de povo errante, místico, perigoso e contraventor. Assim, no contato com
as imagens construídas e alimentadas no Ocidente, foi criado o conceito de um
povo Cigano.
E o que é ser Cigano?
Definir a identidade Cigana
é bem mais difícil do que parece. Subdivididos em 3 principais etnias (rom,
calon e sinti), eles não constituem um povo homogêneo. Nem todos são nômades.
Nem todos falam romani. Nem todos dançam ao redor de fogueiras ou usam roupas
coloridas. Podem ser pobres ou ricos. Podem ser cristãos, muçulmanos, judeus. O
que faz deles um povo é uma sensação comum de não serem gadgés – como eles
chamam os não-Ciganos – e de se identificarem como rom, calon ou sinti. “O
termo ‘Cigano’ só funciona nessa oposição”, diz o pesquisador Frans Moonen,
autor do livro Anticiganismo – Os Ciganos na Europa e no Brasil.
Mas, apesar de todas
as divergências, algumas características permitem traçar um perfil comum a
esses grupos. A primeira delas é o espírito viajante. Ainda que nem todos sejam
nômades, os Ciganos não se sentem pertencentes a um único lugar. Não criam
raízes, não têm uma noção concreta de propriedade – estão sempre fazendo
negócios com seus pertences, preferencialmente em ouro, que não perde valor e é
aceito em qualquer nação (por isso a imagem Cigana é vinculada ao uso do ouro
como adereço, especialmente nos dentes das mulheres). Eles não gostam de se
submeter a leis e a regras que não sejam as deles. Prezam, acima de tudo, a
liberdade. Assim, podem até se estabelecer por muito tempo em um mesmo lugar
(como é comum entre os sinti). Mas, nesse caso, procuram morar em uma mesma rua
ou, de preferência, em acampamentos onde possam preservar sua autonomia e
manter a unidade familiar – outro aspecto primordial na vida Cigana.
É em torno da família
que uma comunidade Cigana se organiza. Há um líder, sempre um homem, nomeado
por mérito e não por herança. Ele é escolhido levando em conta vários aspectos.
Um deles, importantíssimo para conseguir alugar um terreno, montar um circo ou
participar de feiras, é ter um documento de identidade, o que se tornou um
verdadeiro desafio – o Cigano não consegue registrar o nascimento dos filhos
porque não possui documentos próprios, em um processo sem fim. Também deve ser
um bom interlocutor entre o poder público e seu grupo, além de ter habilidade
para resolver os problemas internos do acampamento. É ele quem dita as regras,
divide as tarefas, cria as leis do grupo.
A sociedade Cigana é
patriarcal, quase machista. Ao se casar, o homem vira o responsável pelo
sustento do lar. A mulher passa a morar com a família do marido e deve cuidar
dele, dos sogros, da casa e dos filhos. Isso costuma acontecer cedo, ainda na
adolescência: logo após a primeira menstruação, a menina já é considerada apta
para casar e ter filhos. A noiva deve ser virgem. Tradicionalmente, sua pureza
é comprovada em um dos rituais da longa festa de casamento, em que o lençol da
noite de núpcias é exibido para toda a comunidade. Antigamente, os pais do
noivo deviam pagar um dote à família da moça, mas esse hábito já não existe
mais na maior parte dos acampamentos.
O casamento entre
primos, no entanto, continua sendo estimulado, também na tentativa de preservar
o núcleo familiar. É natural que em comunidades nômades seja mais difícil
acontecer um casamento entre Ciganos e gadgés. Mas é possível e permitido.
Nesse caso, o homem ou a mulher deve mudar de vida. Ser Cigano não depende do
sangue – se o gadgé optar por se integrar ao grupo, automaticamente vira um
deles.
À medida que se
estabeleceram na Europa e nas Américas, os Ciganos assimilaram cerimônias e
ritos ocidentais. No Brasil, por exemplo, o catolicismo foi adotado pela
maioria (é comum encontrar imagens da Nossa Senhora Aparecida nas barracas).
Mas algumas tradições permanecem fortes. A simbologia da morte é a principal
delas. “Quando um Cigano morre, há um processo de morte que se instala em todos
os indivíduos do grupo”, afirma Aluízio. Os calon realizam rituais de cura
assim que é diagnosticada a doença. Além de aceitar a medicina tradicional,
eles recorrem a rezas, correntes de orações, garrafadas de ervas, chás e
simpatias, geralmente ministradas por uma curandeira do grupo.
Durante o velório, o
morto é o centro do ritual e, dependendo da posição que ele ocupava, a família
se reestrutura: uma nova liderança terá que ser eleita. O corpo do falecido é
lavado, untado com ervas aromáticas e vestido adequadamente. Esse momento de
sofrimento e cumplicidade é importante para a identidade do grupo. Como em
outras culturas, percebe-se a possibilidade de transcendência. No caso dos Ciganos,
esse é o momento de encontrar a sua alma naturalmente viajante.
Em alguns
acampamentos, eliminam-se todos os pertences do morto. Até o seu trailer chega
a ser queimado. “É como um corte na história. Nada é guardado, não se resgata o
passado”, diz Florencia Ferrari, estudiosa do assunto e autora do livro Palavra
Cigana. Depois da morte de um membro, muitos grupos Ciganos se mudam para outro
acampamento.
Os Ciganos hoje
Imagina-se que
existam 15 milhões de Ciganos espalhados pelo mundo. Como tudo relacionado a
esse universo, essa é só uma estimativa – eles vivem à margem da sociedade e
não costumam participar de pesquisas de censo demográfico.
E isso, por si só, já
é uma polêmica. Em maio deste ano, o premiê italiano, Silvio Berlusconi,
autorizou que fosse feito um censo especial para mapear a presença de Ciganos
sem moradia fixa na periferia das grandes cidades italianas. O censo incluiria
dados como etnia, religião e impressão digital – que não são exigidos na
identidade dos italianos. Os Ciganos saíram às ruas em protesto, argumentando
que essa seria uma ferramenta racista e discriminatória.
A medida foi
considerada ilegal pelo Parlamento Europeu, já que impõe exigências desiguais a
cidadãos do bloco. Mas os Ciganos continuam com medo de ser expulsos do país,
ainda que um terço dessa população não seja nem mesmo imigrante.
O receio é
justificável: desde o século 15 os Ciganos não têm um momento de folga. Até o
século 19, eles foram escravizados na região onde hoje é a Romênia. Durante a
2a Guerra Mundial, foram perseguidos pelos nazistas, sendo, de acordo com
alguns historiadores, o povo mais dizimado pelo Holocausto: do 1 milhão de Ciganos
que vivia na Europa, 500 mil foram assassinados. Muitos dos sobreviventes
emigraram para os EUA, daí a lei que impedia sua entrada no estado de Nova
Jersey, que só foi abolida nos anos 90.
“Na Europa, em
praticamente todos os países, os Ciganos são a minoria mais discriminada, muito
mais do que os judeus ou os negros”, diz Moonen. E no Brasil não é muito
diferente. O primeiro grupo de Ciganos, de maioria calon, chegou por aqui no século
16, deportados de Portugal. Os rom vieram de forma voluntária a partir da 2a
metade do século 19. Naquela época, eram comerciantes ambulantes de escravos,
cavalos e artesanatos. Hoje compram e vendem carros, televisores e toalhas. Os
mais recentes, às vezes bem pobres, vieram do Leste Europeu após a derrocada da
União Soviética. Alguns são sedentários, mas a maioria se mantém na vida
itinerante. Todos sofrem com desconfianças e preconceitos.
A cidade de Sousa, no
interior da Paraíba, é um caso clássico. Os cerca de 450 Ciganos fixados há
anos por lá não recebiam entregas de correio nem tinham o lixo coletado em seu
acampamento. Curiosamente, muitas escolas recusavam a matrícula de crianças Ciganas.
O caso ficou bem conhecido na região: foi necessária a intervenção da
Procuradoria da República da Paraíba para resolver a questão.
Tanto no Brasil
quanto na Europa, o analfabetismo entre os Ciganos é alto. Por aqui, segundo a
historiadora Isabel Fonseca, 3 em cada 4 mulheres Ciganas são analfabetas. Por
lá, escolas que só aceitam Ciganos têm os piores níveis de qualidade. A falta
de estudo e a vida à margem os empurram cada vez mais para a criminalidade, o
que alimenta as visões deturpadas e generalizadas que sobrevivem desde os
primeiros contatos entre Ciganos e europeus. Enquanto não forem compreendidos,
eles se mudarão e começarão tudo de novo. Seguirão vivendo sua saga Cigana.
“Parece que os Ciganos
vieram ao mundo somente para ser ladrões: nascem de pais ladrões, criam-se com
ladrões, estudam para ser ladrões (...).”
– La Gitanilla,
Miguel de Cervantes, 1613.
Iguais,
mas diferentes
Quem
são os 3 principais grupos Ciganos?
Rom ou Roma
Predominantes nos
países balcânicos, principalmente na Romênia, falam romani, a mais conhecida
das línguas Ciganas, e são o grupo mais estudado pelos pesquisadores. São
divididos em subgrupos: kalderash, matchuaia, curcira, entre outros.
Consideram-se os “Ciganos autênticos”.
Sinti
Também chamados de
manouch, são mais numerosos na Itália, no sul da França e na Alemanha. Falam a
lingua sintó, para alguns pesquisadores, uma variação do romani. Não há estudos
que apontem a presença significativa desse grupo no Brasil.
Calon ou Kalé
Conhecidos por “Ciganos
ibéricos”, já que viviam na Espanha e em Portugal antes de se espalhar pelo
resto da Europa e da América do Sul. São os criadores do flamenco e
responsáveis pela popularização da figura da dançarina Cigana. Falam a língua
caló e são o grupo mais numeroso do Brasil.
Verdade
ou mentira?
A
origem das histórias do imaginário Cigano
Ciganas
lêem a sorte
Amparados pelo
mistério que os rodeava, os Ciganos perceberam que poderiam utilizar a
curiosidade dos povoados sobre o futuro como um modo de fazer negócio e ganhar
dinheiro. A crença virou parte da cultura Cigana. Hoje, as Ciganas lêem até
mesmo a sorte de outras mulheres do grupo, mas, nesse caso, sem dinheiro
envolvido.
Ciganos
roubam crianças
Essa crença pode ter
vindo do hábito dos Ciganos de circo de incorporar à trupe crianças órfãs ou
abandonadas que se encantavam pelo seu estilo de vida. Mas o mais provável é
que o medo daquele povo desconhecido o tenha transformado em uma espécie de
bicho-papão para os europeus.
Ciganos
são negociantes
É possível que sua
vida errante tenha favorecido atividades relacionadas ao comércio. Além de
terem acesso a objetos “maravilhosos” dos lugares por que passavam, conseguiam
carregar a sua forma de sustento numa mala sempre que precisavam levantar
acampamento.
Ciganos
são trapaceiros
Na Idade Média,
aquelas pessoas exóticas e desconhecidos eram vistas como bruxas (muitas foram
queimadas durante a Inquisição). A vida à margem da sociedade muitas vezes os
empurrava à criminalidade. As outras formas que encontravam para ganhar
dinheiro – comércio e leitura de mãos – colocavam à prova sua honestidade. Essa
confluência de fatores pode ter criado a imagem do Cigano trapaceiro.
Ciganos
falsificam ouro
Tradicionalmente,
muitos grupos Ciganos dominam o trabalho com metais. Algumas etnias carregam
isso até no nome, como os kalderash (“caldeireiros”, em romani). No Brasil, os Ciganos
participaram da exploração de minas de ouro no século 18. Junte-se tudo isso à
fama de trapaceiros e fica fácil entender a crença de que eles falsificam
metais.
Ciganos
honram a palavra
Como são um povo sem
escrita, as leis Ciganas são regidas com base na palavra dada. O
não-cumprimento de uma regra ou de um acordo representa uma grande ofensa à
sociedade Cigana, e quem o faz é desmoralizado perante o grupo.
Por
Luciano Marsiglia
Fonte:
http://super.abril.com.br/
Somos caminhantes que a seculos, somos um povo ordeiro, que somente desejamos transmitir nossos ensinamentos aos seres que anseiam novos conhecimentos aos seres humanos que vivem na superfície terrestres.
ResponderExcluirA cada dia que passa mais me encanto com o povo cigano, sabendo que a minha cigana é Iris e aos poucos me aproximando mais dela. Deixo aqui o meu abraço.
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